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Um relatório do Itaú sobre o impacto das apostas online no Brasil gerou debates no meio corporativo. R$24bi, equivalente a 0.2% do PIB ou 1.9% da massa salarial dos brasileiros foram gastos nessa atividade. 14% da população brasileira já apostou na Internet.

Eu achei a repercussão pequena quando comparado com o tamanho do problema.

Cassinos online são apenas a ponta de um tema maior, um dos grandes desafios da nossa sociedade: o fato que a tecnologia acelera vícios.

Observação: este artigo é cheio de opiniões pessoais, cheque a sessão de disclaimer no final do mesmo.

Se tiver apenas um minuto, segue um resumo:


  • O progresso tecnológico nos permite fazer mais, com menos, das coisas que queremos. O lado negativo é que a tecnologia permite que consigamos produzir versões mais concentradas e potentes de coisas que não nos fazem bem, a ponto de estas serem letais.

  • Num cenário em que é cada vez mais fácil criar qualquer software, as empresas estão chegando a conclusão que deixar seus usuários altamente “engajados” (codinome corporativo para viciados), é uma forma de criar um diferencial competitivo.

  • Quando atividades que já eram viciantes antes do digital começam a ser turbinadas por estratégias de engajamento, os problemas surgem rapidamente.

  • Não existe solução fácil para esse dilema e ele não se restringe apenas aos cassinos online.


Progresso Tecnológico e Vício

Peter Thiel, cofundador do PayPal e um dos mais importantes investidores do Vale do Silício define Tecnologia como “qualquer coisa que faz mais, com menos”.

A maioria das coisas que hoje descrevemos como viciantes, tiveram predecessores menos potentes. É o caso, por exemplo, de álcool destilado, cigarros e heroína. Foi através do uso de tecnologia que conseguimos criar versões mais concentradas.

Processo de fabricação de cigarros

 

O progresso tecnológico nos permite fazer mais, com menos, das coisas que queremos. E ele vem acelerando, o que é uma coisa boa! É esse progresso que traz desde a descoberta de novas fontes de energia até a conquista do Espaço e a extensão de nossas vidas com qualidade.

O lado negativo é que a tecnologia permite que consigamos produzir versões mais potentes de coisas que não nos fazem bem, a ponto de estas serem letais.

O saldo líquido do desenvolvimento tecnológico é positivo para a sociedade. No entanto, um dos impactos negativos, que é que a tecnologia está deixando o mundo mais viciado. Pior ainda, os empreendedores estão percebendo que criar um produto viciante é bom para os negócios.

Vamos analisar alguns exemplos:

Redes Sociais

O TikTok é a rede social mais viciante da atualidade. É um aplicativo feito para entregar dopamina. Um usuário passa, na média, 95 minutos/dia e checa o aplicativo 8x a cada 24 horas. É utilizado por mais de um bilhão de pessoas todos os meses.

Minutos gastos por dia em aplicativos

 

Redes Sociais operam sobre o principio do Efeito de Rede (Network Effect). Um novo usuário entra no Instagram pois seus amigos já estão lá. Ele fica na rede pela mesma razão. No entanto, o TikTok não opera sobre essa lógica. A interação com seus amigos não é o principal atrativo da plataforma, mas sim o conteúdo disponível. Além disso, o seu algoritmo é excelente em adivinhar qual o próximo vídeo que o usuário quer assistir. Talvez “Rede Social” nem seja o melhor termo. O TikTok é uma plataforma para consumo de conteúdo, as interações ficam em segundo plano.

O tema de vícios em redes sociais já foi bem coberto em documentários. Elas foram pioneiras no conceito de deixar os usuários “engajados” (codinome corporativo para “viciados”). Essa abordagem inspirou empresas nos mais diferentes setores.

Investimentos

O Robinhood é um aplicativo americano para smartphones onde os usuários compram e vendem ações. Lançado em 2015 e oferecendo serviços de “graça” – a empresa ganha dinheiro vendendo o fluxo de ações para market makers – o aplicativo focou em transformar a atividade de investir em um jogo. Por exemplo, quando uma transação é feita, aparecem confetes. Quanto mais uma pessoa opera, mais a empresa ganha dinheiro. Isso apesar de que múltiplos estudos (aqui, aqui) já comprovaram que fazer day trade não é rentável.

Aplicativo do Robinhood

 

Charlie Munger, comentou sobre a empresa: “É um salão de cassino disfarçado de negócio respeitável… E está dizendo às pessoas que elas não estão pagando comissões, quando as comissões estão simplesmente disfarçadas nas negociações. Basicamente, é uma operação sórdida e de má reputação.

A Lógica de Negócios

Warren Buffet diz que o melhor negócio é um que vende de forma sustentável algo que as pessoas precisam, que não possui substitutos, em que o negócio pode cobrar o que quiser e cresce precisando de poucos ou nenhum investimento adicional. Em resumo, um monopólio não-regulado, asset light, vendendo uma necessidade humana. Esse negócio não existe, ainda bem!

No entanto, empresas precisam criar valor para seus clientes e capturar parte desse valor para si e seus acionistas. No mundo digital, isso fica cada vez mais difícil. Criar software está cada vez mais fácil, aumentando a competição. Nos anos 2000, se você quisesse construir um aplicativo, era preciso de servidores próprios, otimizar a arquitetura de back-end, construir sistemas de pagamentos para só depois começar. Hoje você pode construir tudo isso via APIs.

Criação de Softwares hoje usa APIs

 

Num cenário competitivo como esse, como que uma empresa pode oferecer “algo que as pessoas precisam”? Bom, elas podem deixar as pessoas viciadas em seus produtos, transformando-os numa necessidade.

Vício ao Quadrado

Aplicativos de Redes Sociais, Investimentos, Perda de Peso, Pedido de Comida. Todos eles utilizam a mesma abordagem de aumentar o engajamento do usuário. O que todas essas atividades têm em comum é elas não eram viciantes na era pré-digital.

Os problemas são mais agudos em atividades que já eram viciantes antes de surgirem no online. Eu chamo essas situações de “vícios ao quadrado”.

Juul

Propaganda da Juul

 

Quando me formei no MBA de Stanford, uma das empresas que mais contratou meus colegas de turma foi a Juul. Ela tinha inicialmente o propósito de fazer as pessoas pararem de fumar. Ao trocar o cigarro pelos seus cartuchos de vaporização, o consumidor iria, “desmamar” do cigarro. Além disso, seus cartuchos eram menos ruins para a saúde, dado que não tinham combustão do tabaco. Neles, a nicotina é vaporizada.

No entanto, oferecer um produto que os clientes vão deixar de consumir depois de um tempo não é um grande negócio. A Juul começou então uma estratégia de marketing que focava em pessoas jovens que não fumavam. Eu morava em NY nessa época. Foi um show de horror.

Os cartuchos da Juul de fato não queimavam tabaco, mas continham altos níveis de nicotina e substancias químicas que, além de causar dependência, apresentavam riscos para a saúde. Um pod de Juul tinha nicotina equivalente a 20 cigarros. Era a tecnologia possibilitando o surgimento de um produto mais potente do que o que existia até então.

Material adaptado da Stanford Medicine

 

Foi um retrocesso absurdo. Adolescentes voltando a fumar…A empresa recebeu uma reposta brutal de diversos grupos da sociedade, como reguladores, associações de pais, ONGs, mídia e legisladores A Juul enfrentou críticas e processos judiciais. Rapidamente sua reputação foi pro buraco e as restrições regulatórias a encolheram para uma pequena fração do seu auge.

Tigrinho e os Cassinos Online

Sabe outra coisa que vicia tanto quanto cigarros? Jogos de Azar. E é aqui que chegamos na análise do Itaú que chamou atenção da mídia.

O resumo da história é que em 2018 uma lei autorizou sites de apostas online no Brasil. A regulação foi aprovada no final de 2023 e ainda está em fase implementação, no entanto as empresas de cassinos online já estão operando no país. O setor em pouco tempo virou uma das maiores atividades econômicas do país.

A primeira coisa que veio na minha cabeça ao ler a análise foi o fato de que veio de um banco privado. Ela se destinava a ajudar investidores a entender os potenciais impactos dessa atividade em empresas de varejo. Eu imaginaria que os próprios reguladores e legisladores seriam os principais interessados em entender o impacto das leis que criaram.

Não que sejam necessários novos estudos. Já existe bastante pesquisa que mostra que a proliferação de cassinos online destrói a vida de viciados em jogos, cria novos viciados e provavelmente não é uma coisa muito boa para a sociedade como um todo.

Utilizar estratégias de crescimento e engajamento criadas por empresas de tecnologia no negócio de cassinos é tipo jogar gasolina num incêndio.

A DraftKings é uma empresa de apostas esportiva. A empresa tem uma taxa de retenção de usuários de 83%. A pesquisa sobre essa métrica indica que uma taxa de retenção em torno de 60% é excepcional. Além disso a monetização em cima de apostadores que continuam na plataforma por três anos cresce de forma exponencial.

Fonte: DraftKings

 

Mas por que os cassinos online foram regulados no Brasil?

Passei a pergunta acima ao ChatGPT, que me disse o seguinte: “os cassinos online foram regulamentados no Brasil para proporcionar uma maior segurança aos jogadores, combater a ilegalidade, aumentar a arrecadação de impostos, e permitir o monitoramento e controle das atividades de jogo, garantindo práticas mais justas e responsáveis no mercado de apostas online. A regulação também visa atrair investimentos e criar um ambiente mais organizado e transparente para o setor”.

É verdade que esse não é um movimento exclusivo do Brasil. Muitos países têm adotado regulamentações para controlar o mercado de jogos de azar online. O Reino Unido, Estados Unidos (em 38 dos 50 estados), e vários países da Europa já possuem regulamentações para o setor.

No entanto, essa é uma atividade altamente viciante – 1% da população adulta americana é viciada em jogos e 2 a 3% tem problemas com jogos. Esses percentuais podem parecer pequenos, mas representam 6 a 8 milhões de pessoas. Atrás de cada pessoa tem uma familia. Além disso, estes estudos são antigos, de quando os jogos eram feitos apenas no mundo real. Num país como o Brasil, em que esse hábito é novo, a população tem baixa educação financeira, eu acredito que é grande o risco que uma porcentagem relevante da população enfrentar problemas financeiros por causa dos cassinos online.

Qual a Solução?

A cada dia que passa o progresso tecnológico acelera e o mundo fica mais viciante. Em paralelo, os próximos anos nos trarão novas tecnologias maravilhosas. Como lidar com este paradoxo?

Uma solução é a proibição unilateral pelo Estado. Casos, como a Lei Seca e a “Guerra às drogas” já nos mostraram que proibições muitas vezes causam mais mal do que bem e não funcionam. Além disso, com a existência de tecnologias como blockchain e VPNs, é quase impossível difícil impedir uma ação que é tomada no âmbito digital.

Outra solução é educação. Treinar a nós mesmos para conseguirmos resistir aos vícios. Não me parece algo factível em larga escala.

Algumas pessoas me dizem que estou me preocupando a toa. Eventualmente as sociedades conseguem desenvolver mecanismos de defesa a um vício. Foi o que aconteceu com o cigarro. Nas décadas de 60 e 70, 42% da população mundial adulta fumava. Décadas de campanhas de saúde pública, aumento da conscientização sobre os riscos à saúde, regulamentações mais rigorosas e impostos sobre o tabaco tiveram impacto. Atualmente, apenas 11% e 9% da população norte americana e brasileira, respectivamente, fuma.

Exemplos de Propagandas Anti-tabagistas

 

Eu acho essa visão otimista. O desafio de hoje é maior que no passado. No Século XX convivíamos com poucas coisas viciantes (álcool, drogas, jogos, etc). Atualmente temos uma quantidade crescente de potenciais vícios e algumas das melhores mentes do mundo moderno otimizando seus produtos para isso.

Eu não tenho uma solução. Primeiro vou tentar resolver com o meu próprio vicio com o Smartphone. Caso descubra algo, compartilho com vocês.

Obs: O artigo de hoje foi inspirado pelos textos do Evan Armstrong e Paul Graham de quem peguei emprestado algumas ideias. Agradeço a ambos por me trazerem luz neste tema.

Grande abraço,

Edu

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