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Caso tenha apenas um minuto, segue o resumo do texto de hoje:


  • Inovações computacionais são aplicadas primeiro nas principais empresas de tecnologia do mundo

  • Atualmente o iFood possui mais de 43 milhões de usuários, GMV de mais de US$9b, é rentável, além de ser uma das marcas mais admiradas do Brasil

  • Inteligência Artificial fazia muito sentido para o iFood pois os dados não são “estáveis”. As coisas mudam de um dia para outro. Por outro lado, a empresa gera milhões de novos dados, que são insumo para modelos de machine learning

  • O iFood é um caso que nos mostra que com a cultura, liderança, talento e investidores alinhados, é possível construir uma empresa de alta tecnologia proprietária no Brasil

  • O Livro “O Cientista e o Executivo” conta em mais detalhes o caso do iFood em IA. Recomendo a leitura!

PS: Se você quer se aprofundar sobre o tema de IA, que tal ler os artigos que compõem a nossa série sobre o tema? Nvidia, História da IA, OpenAI, Oportunidades em IA Generativa


Coincidências da Vida

Já faz algum tempo que estava procurando um case interessante sobre uso de Inteligência Artificial (IA) numa empresa brasileira. Atualmente, são as grandes empresas de tecnologia as primeiras a utilizarem o que existe de mais moderno do ponto de vista de plataformas computacionais. Se queria achar algo na fronteira de IA, eram nelas que eu deveria focar. Na América Latina, estou falando de um grupo seleto que inclui empresas como Mercado Livre, NuBank, iFood dentre outras.

Mal sabia eu que a resposta estava ao meu lado. Tenho o grande prazer de servir no conselho de administração de uma empresa de tecnologia junto do Diego Barreto. Além de sócio, CFO e VP de estratégia do iFood, o Diego é escritor. Um dia ele me chamou de lado e falou de um projeto. Junto do Sandor Caetano, Vice Presidente de Dados & IA do iFood, eles estavam terminando um livro sobre como a empresa alavancou seus dados e usou IA para melhorar seus processos. O texto de hoje alavanca muito do que está no livro, que tive a chance de ler antes do lançamento, e de conversas com o Diego.

Disclaimer: o artigo de hoje não é patrocinado. Eu apenas gostei da história.

Diego Barreto

iFood

O iFood nasceu em 2011 por iniciativa de cinco cofundadores a partir de outra empresa de entregas, o Disk Cook. Fabricio Bloisi, fundador da Movile, liderou uma rodada de investimentos de R$5m em 2013 e se juntou ao time. Naquela época a empresa era pequena e cabia em uma sala. A Movile se tornou a maior acionista, definindo a cultura e a visão da nova companhia. Alguns anos depois, Fabricio eventualmente se tornou o CEO do iFood, que crescia dentro do portfólio de investimentos da Movile, e fez fusões com empresas como Restaurante Web e Hellofood, assumindo a liderança do setor.

A Movile é controlada pela holding Prosus, que junta todos os investimentos em tecnologia do grupo de mídia sul-africano Naspers. Essa empresa já foi citada no artigo sobre a Tencent. Ela é meio que um equivalente ao Grupo Globo no Brasil, mas que se distinguiu de seus pares ao começar a investir em empresas de tecnologia em mercados emergentes. O investimento da empresa na Tencent, de US$32m, é considerado um dos melhores de toda história, sendo avaliado em mais de US$100b. A Prosus, através da Movile, é a maior acionista do iFood.

O iFood é um filho da Movile. Ambas são empresas com Cultura de Gestão muito forte. Seus valores são praticados no dia a dia. Profissionais apenas conseguem progredir na organização se estiverem alinhado com eles. Alguns dos princípios de gestão incluem:

  • Pensar Grande

  • Não ter medo de errar, mas corrigir rápido

  • Não perder o foco (não se afogar)

  • Manter a pressão na medida certa

  • Manter-se simples e entregar

  • Estimular profissionais responsáveis

  • Produzir pouca burocracia

  • Ser ambidestro

  • Manter a barra alta

  • Legolizar

  • Face the brutal facts

Aqui faço a ressalva que uma vez Marcel Telles me disse: “Todo mundo pode enumerar nossos valores, mas vivê-los é outra coisa. É algo completamente diferente

O iFood é hoje uma empresa com mais de 43 milhões de usuários, GMV acima de US$9b, é rentável (algo importante de destacar no mundo tech), além de ser uma das marcas mais admiradas do Brasil.

Início da Jornada

É difícil dizer exatamente quando uma empresa se convencer que deveria ir numa direção. Na verdade é um processo. No caso do iFood, a liderança da empresa começou a fazer imersões no Vale do Silício e Ásia, para aprender o que existia de mais moderno em termos de gestão de empresas de tecnologia. O tema de IA começou a aparecer com mais frequência. Importante ressaltar aqui que ao falarmos de IA neste momento, não estamos falando da IA Generativa, tecnologia que empresas como OpenAI estão trazendo ao mercado, mas sim IA de uma forma mais abrangente.

O ponto é que em 2019 o iFood já tinha desenhado a sua visão de futuro e ela implicava em criar vantagem competitiva via inovação e tecnologia. Para isso a empresa contou com um apoio muito importante da Prosus, via expertise e principalmente recursos financeiros, com uma captação de US$500m no final de 2018 para reconstruir a sua infraestrutura, governança e uso de dados.

A Inteligência Artificial daria escalabilidade aos negócios, ponto fundamental em uma empresa de crescimento acelerado operando num grande mercado que continuava se expandindo. O objetivo era desenvolver Tecnologia Proprietária.

Fraude, o elefante na sala

Depois que foi definido que IA seria uma das tecnologias chave para o iFood, Sandor foi recrutado, com a tarefa de criar modelos para ajudar na área que mais chamava atenção na época: fraude. Toda vez que uma fraude passa pelo iFood, o prejuízo é enorme. A empresa opera um modelo “asset light” de intermediação de uma transação entre cliente/motorista/restaurante. Quando ocorre uma fraude, ela precisa arcar com perdas equivalente ao valor do pedido + custo de oportunidade das partes + a potencial insatisfação. O prejuízo com uma fraude é muito maior que o lucro com um pedido honesto. No entanto, ser muito conservador também tem custo: clientes e parceiros idôneos podem se ofender com uma rejeição e ir para outra plataforma.

Também existia a questão da escala. A possibilidade de grandes volumes financeiros de fraudes traziam para a plataforma do iFood uma elite de criminosos. De 2019 à 2020, as fraudes mensais sairam de R$5m para R$20m por mês.

Modelos de machine learning eram ideais pois poderiam aprender em pouco tempo uma nova estratégia fraudulenta e ajustar os critérios de aprovação. Quando um criminoso acerta uma fraude, este acelera a 100 por hora e começa a sangrar o caixa da companhia. Um modelo que pudesse aprender a todo momento, conseguiria barrar uma fraude mais rápido que qualquer outro tipo de regra rígida que é revisitada a cada semestre ou ano.

Cultura Orientada a Dados

No final de 2018, com o caixa cheio pela rodada da Prosus, a empresa começou seus projetos ambiciosos. Um dos usos dos recursos era reconstruir a sua infraestrutura tecnológica, que não tinha a flexibilidade e escalabilidade para crescer mais de 100% ao ano, o que vinha acontecendo todos os últimos anos. Isso deveria acontecer enquanto a empresa estava num ambiente de competição ferrenha, com a entrada de concorrentes estrangeiros bem financiados. Uma das decisões que a empresa tomou foi migrar talentos seniors da holding Movile para o iFood e expandir o time de tecnologia como um todo. O próprio CEO da Movile, Fabricio, migrou para ser CEO do iFood, com a visão que esta poderia ser, de longe, a maior empresa do grupo.

Uma das primeiras iniciativas foi o Projeto LEGO, que automatizou os processos da empresa de ponta a ponta, em um sistema mais modular. O iFood migrou do monolito para uma arquitetura de microsserviços, com alto nível de automação. Essa mudança seria essencial para conseguir operar em nível nacional. Os sistemas foram “fatiados” em diferentes peças, como um LEGO. Esta foi uma enorme empreitada, que precisou enfrentar tanto barreiras externas, como a dificuldade técnica, quanto internas, sendo a resistência a mudanças por parte dos colaboradores a mais comum.

Uma das grandes vantagens de automatizar processos é que isso permite coletar dados. Estes precisam ser então armazenados, tratados e disponibilizados para que se tornem informações. Isso implica numa mudança cultural no uso de dados.

Numa empresa, departamentos têm, com alta frequência, interesses quase que opostos. Marketing quer aumentar o market share; o financeiro, o lucro. Um quer segurar os preços para ampliar a base de clientes, o outro quer aumentá-los. É um cabo de guerra sem fim. É aqui que entra a Inteligência Artificial. Ao criar modelos de IA e alimentá-los com os dados, seria possível fazer gestão baseada não em intuição, mas sim numa “intuição instruída”. Se aumentarmos o preço por X% nessa categoria numa cidade específica, o impacto será de Y% no market share e Z% no resultado. Para fazer gestão é preciso de dados e modelos de IA ajudam a melhorar a gestão como um todo.

Inteligência Artificial fazia muito sentido para o iFood pois os dados da empresa não são “estáveis”. As coisas mudam de um dia para outro. Por outro lado, a empresa gera milhões de dados, insumo para a prática de machine learning. Uma série de bons modelos, que geram recomendações a cada minuto, seriam uma enorme vantagem competitiva para a empresa.

Em paralelo com a reconstrução da sua infraestrutura tecnológica, o iFood também precisou construir novos sistemas que permitissem ter acesso aos dados que estavam sendo colhidos. Isso quer dizer Data Lakes, Platforms, e Warehouses. Democratizar o acesso a dados era uma meta tão importante quanto os potenciais problemas e dificuldades que aparecessem no caminho.

IA não era a única tecnologia que a empresa estava testando. Conceitos como Super App, Crypto, dentre outros também eram avaliados, no espírito empreendedor que uma empresa de sucesso como o iFood possui.

Do ponto de vista organizacional, a empresa se organizou em tribos e squads – agrupados por produto – e chapter e guilds – unidos horizontalmente por interesse e habilidade.

Ganhando Terreno

Um dos gargalos que a empresa enfrentou foi acesso a talentos. Para isso, se posicionou como a avançada empresa de tecnologia que era. Também foi criativa ao realizar “acqui-hires”, comprando empresas com o interesse explícito na mão de obra que lá trabalhava em detrimento do ativo financeiro adquirido.

Recursos Humanos não são apenas contratados. Treinar aqueles que já estão na companhia é uma das formas mais eficientes de ganhar produtividade. O iFood criou o treinamento BADHU: Business Analyst Data Heavy User, dando assim o ferramental para que a cultura de dados se espalhase pela organização. No fim de 2019, 50% da empresa já sabia trabalhar com SQL, tendo assim a capacidade de estabelecer uma ponte entre a área técnica e a executiva.

No tema de IA, foi estabelecida a meta de dez modelos de IA em seis meses. As áreas escolhidas foram: Tempo de Entrega, Fraude de Cartão de Crédito, Marketing, Logística, Abusos de Restaurantes contra os Termos e Condições.

Na época, uma prática muito utilizada pelos concorrentes era o cupom. Oferecer um serviço, seja um almoço na segunda, ou cash back numa compra, ajudariam a fidelizar um cliente, para que este migrasse de sua plataforma atual, que provavelmente era o iFood, para outra.

O ponto chave desta estratégia é o retorno financeiro. Isso quer dizer que ao oferecer um cupom de valor X, este vai voltar à plataforma e fazer compras que geram mais que X em lucro bruto. Se errar, o prejuízo é caro e pior, auto infligido. O cliente ideal do cupom é aquele que precisa apenas de um empurrãozinho para comprar. Uma modelagem de comportamento de consumidores certeira está por trás de uma boa estratégia de cupons. IA foi essencial para modelar estas ofertas, ajudando na sedimentação desta tecnologia como parte chave do “tech stack” do iFood.

Um outro projeto fundamental foi o cálculo do tempo de entrega. Um jantar entre amigos fica mais prazeroso quando sabemos quando vamos comer. Pode também ser o fiel da balança entre usar iFood ou algum competidor.

O iFood foi pioneiro ao criar uma rede neural que inclui dados como (i) Dia da semana; (ii) Se está chovendo ou não; (iii) Número de entregadores na região específica; (iv) Tempo de preparo médio de cada um dos pratos pedidos; (v) Ritmo de entregas; etc etc. Lembrando que este é um modelo que refaz o cálculo a cada poucos minutos, para todos os endereços, de todos os clientes, o dia inteiro. Esse modelo também tinha um risco adicional: o cliente vai reclamar se o pedido demorar muito mais que o modelado.

IA Generativa

O iFood foi uma das primeiras empresas brasileiras a desenvolver seu próprio Largue Language Model (LLM), a partir do BERT, um modelo código aberto. A empresa treinou seu modelo em português, incluiu os dados do iFood e assim nasceu o FoodBert.

Através da Prosus, o iFood entrou em contato com a tecnologia da OpenAI, sendo uma das primeiras (se não a primeira), a utilizar uma versão do ChatGPT, operada via Slack, chamada PlusOne, com dados da própria empresa. Como os próprios autores colocam “Caimos de cabeça”. No começo de 2023, mais de cinco mil funcionários do iFood já usavam o PlusOne, para obter todo tipo de produtividade. Em julho de 2023 foram lançados novos recursos usando IA com interação direta com o consumidor: Compr.IA, o Dora e o iFood Garçom. O Compr.IA ajuda a fazer listas de compras usando o WhatsApp como interface. O Dora é focado em mercados, podendo o usuário pedir via áudio “Quero produtos de baixa caloria” e o aplicativo passa sugestões. Já o iFood Garçom deixa a experiência do aplicativo mais personalizada.

Aprendizados

O livro apresenta uma série de aprendizados sobre como empresas podem utilizar a Inteligência Artificial na sua estratégia e operações.

Antes de qualquer coisa, é preciso ter uma visão consistente, de longo prazo, que seja comunicado ao time de forma simples e inspiradora. A liderança da empresa precisa estar comprometida com essa visão e comunicá-la a todo momento, para ter alinhamento.

Para ganhar apoio interno, é bom mapear alguns projetos que vão trazer resultados rápidos. Quando o resultado vier, comunique para toda a organização. É aquela ideia de trazer todo mundo para o mesmo barco.

A empresa deve ser obcecada em trazer talentos de alta qualidade, ganhando o que merecem, sem mesquinharia. O talento interno que não é versado na tecnologia pode ser treinado, contanto que a empresa ajude nisso e o faça em larga escala.

Implementar a “cultura da falha”, dado que menos da metade das iniciativas trazem resultados positivos. Isso está ligado com uma cultura de agilidade, de sempre lançar melhorias, na vida não existe bala de prata.

Inteligência Artificial é uma tecnologia que precisa ser colocada nas engrenagens da empresa para ter o máximo de impacto. Não pode ser isolada.

Fiquei feliz de encontrar um case tão bacana quanto o do iFood.

Grande abraço,

Edu

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