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Olá, pessoal! Em março, a justiça americana iniciou uma ação antitruste contra a Apple, acusando-a de manter um monopólio ilegal no mercado de smartphones. Poucos dias antes, a Comissão Europeia aplicou uma multa de US$1,9 bilhões à fabricante do iPhone. Recentemente, Jon Stewart, apresentador na AppleTV+, o serviço de streaming da empresa, criticou publicamente a Apple. Ele alegou que o cancelamento de seu show foi, em parte, devido a pressões para que ele evitasse discutir o monopólio das gigantes da tecnologia.
Normalmente quando pensamos na empresa fundada por Steve Jobs, não associamos a empresa a práticas monopolistas, censura ou problemas judiciais. O que está acontecendo?
No coração destas controvérsias encontra-se um de seus pilares: a App Store. No artigo de hoje vamos entender seu funcionamento, incentivos e polêmicas.
Se tiver apenas um minuto, segue o resumo:
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O sucesso do iPhone & App Store foi maior que o de qualquer outro produto na história. Foi o principal responsável pela valorização da empresa, que foi de US$73 bilhões para US$2,65 trilhões de dólares em 16 anos
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Com o lançamento do iPhone, a Apple viu a oportunidade de transcender seu papel como fabricante de hardware para se tornar uma empresa com efeito de rede. Para conseguir realizar essa mudança, a Apple teria que mudar um aspecto fundamental da Internet, que é a sua liberdade
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Ao forçar os desenvolvedores a pedirem permissão para operar em seu sistema, a Apple acumulou poder. No mundo de negócios, pedir permissão quer dizer ser forçado a pagar um pedágio. Os 30% de comissão que a Apple cobra são um número 10 vezes maior que a média da indústria de pagamentos
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Nos últimos anos a empresa tem sido processada por por empresas como a Epic Games, Spotify, Meta, Microsoft, X (de Elon Musk) e Match Group (proprietária do Tinder) devido as politicas da App Store
Computador no Bolso
Em 9 de janeiro de 2007, o mundo presenciou um dos momentos mais significativos na história da tecnologia: o anúncio do primeiro iPhone por Steve Jobs, então CEO da Apple. Este momento marcou o início de uma nova era para os smartphones.
Steve Jobs com o primeiro iPhone
Antes do iPhone, os smartphones eram dispositivos desajeitados. Metade teclado, metade tela. A experiência de navegação na web era frustrante, com sites que mal funcionavam em celulares e velocidades de internet lentas.
Mas o que fazia do iPhone um produto especial?
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Sua interface era intuitiva e amigável, com a tecnologia multi-touch
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Possuía um design premium, usando materiais de alta qualidade, que lhe davam uma aparência elegante e minimalista
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Copiava as mesmas funcionalidades do bem sucedido iPod
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Por fim, uma integração entre hardware e software no ecossistema da Apple (Mac, iPod, etc.)
Estas características inicialmente conquistaram o mundo. Porém, foi alguns meses mais tarde que a Apple executou seu movimento mais estratégico: o anúncio de uma loja de aplicativos exclusiva para o iPhone. Isso transformou o iPhone de um simples telefone com internet e música em um dispositivo versátil, um verdadeiro “canivete suíço” digital com uma vasta gama de recursos e aplicativos.
Criação de Riqueza Como Nunca Antes Vista
Os smartphones revolucionaram o mundo. Em média, as pessoas dedicam cerca de três horas e meia por dia aos seus dispositivos móveis, com 90% desse tempo gasto em aplicativos.
O sucesso do iPhone & App Store foi maior que o de qualquer outro produto na história.
Desde o lançamento do primeiro iPhone, mais de 2,3 bilhões de unidades foram vendidas, consolidando-o como o carro-chefe da Apple. Em 2023, o iPhone sozinho gerou mais de US$200 bilhões em receita para a empresa, representando 60% de seu faturamento total. No cenário global, a Apple detém cerca de 25% do mercado de smartphones, enquanto nos EUA, sua participação excede 60%. Devido ao seu posicionamento de preço premium, a Apple captura impressionantes 85% do lucro operacional total da indústria de smartphones. Esse domínio financeiro permite à empresa investir robustamente em pesquisa e inovação, mantendo sua posição de liderança na principal plataforma computacional para consumidores de nossa era.
Isso sem contar com os produtos adicionais. Por exemplo, se a divisão responsável pelo Airpod, fone de ouvido da Apple, fosse separada em uma empresa independente, ela teria um valor de mercado de US$175 bilhões de dólares.
Desde o lançamento do iPhone, o valor de mercado da Apple saiu US$73 bilhões para US$2,65 trilhões de dólares. Em 2011 ela tornou-se a maior empresa do mundo termos de valor de mercado, posição que manteve quase ininterruptamente até ser recentemente superada pela Microsoft.
Gráfico do valor de mercado da Apple
A Loja dos Aplicativos
A Apple não monetiza o iPhone apenas com a venda de hardware. ela também obtém receita significativa através da App Store. É curioso notar que Steve Jobs inicialmente resistiu à ideia de permitir que desenvolvedores externos criassem aplicativos para o iPhone, cedendo apenas após considerável pressão dessa comunidade. Em julho de 2008, a App Store foi lançada, disponibilizando inicialmente 500 aplicativos.
É aqui que a história fica mais complexa. Uma das controvérsias mais notáveis de Steve Jobs foi sua preferência por sistemas fechados (Closed Source) em oposição a sistemas abertos (Open Source). Esse é um tópico que planejo explorar em detalhe em um artigo futuro, dado seu impacto significativo e mal compreendido na indústria de software.
Em geral, quando um software é desenvolvido, espera-se que seu código seja acessível ao público para revisão, modificação e aprimoramento. Esse conceito é conhecido como Open Source. O Android, sistema operacional móvel, é um exemplo proeminente de software Open Source. Qualquer um pode construir um celular e utilizar e criar sua própria versão do Android, modificando-o conforme desejar.
Exemplo de Softwares Open Source. Fonte: Bessemer Venture Capital
Apesar da tendência da indústria de software ser em direção ao Open Source, a Apple, seguindo a visão de Jobs, permanece como um dos principais defensores dos sistemas fechados. Esta é uma divisão filosófica fundamental na abordagem ao desenvolvimento e distribuição de software, impactando diretamente a inovação, a colaboração e a liberdade dos usuários e desenvolvedores.
Minha loja, Minhas regras
A Apple defende a necessidade de curadoria da experiência do cliente como justificativa para exercer controle total sobre a App Store. Para que um aplicativo seja admitido, desenvolvedores devem aderir a uma série de diretrizes rigorosas que abrangem desde o design e interface até o conteúdo e funcionalidades. Após o desenvolvimento, cada aplicativo é submetido a uma revisão pela Apple, que decide sobre sua aprovação ou rejeição.
A monetização da App Store pela Apple ocorre de três maneiras:
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Comissão sobre Vendas: a Apple cobra uma comissão de 30% sobre todas as vendas de bens e serviços digitais realizadas dentro dos aplicativos. Importante notar que esta comissão não se aplica a serviços que são intermediados pelo aplicativo mas consumados no mundo físico, como corridas de Uber, compras no Mercado Livre ou pedidos pelo iFood. Por outro lado, assinaturas de serviços como Netflix ou Disney+ feitas por um iPhone estão sujeitas à taxa. Para assinaturas, a comissão é reduzida para 15% após o primeiro ano de assinatura contínua.
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Taxa do Programa de Desenvolvedores: há também uma taxa anual para adesão ao Programa para Desenvolvedores da Apple.
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Publicidade: similar ao Google Ads, a Apple permite que desenvolvedores paguem para ter seus aplicativos promovidos no topo das buscas na App Store. Um caso notório foi o do TikTok, que investiu para aparecer como primeiro resultado ao buscar por “Instagram” na loja.
App Store
Em 2022, o ecossistema da App Store facilitou mais de US$1,1 trilhão em faturamentos e vendas globais. Esse valor representa um crescimento impressionante em relação aos anos anteriores, com US$868bi em 2021, US$643bi em 2020, e US$519bi em 2019.
Atualmente, a App Store abriga mais de 1,8 milhões de aplicativos, contribuindo significativamente para a criação de bilhões em valor de mercado para empresas baseadas em aplicativos como Tencent (US$320bi), Netflix (US$260bi), Bytedance (US$250bi), Alibaba (US$185bi), Uber (US$160bi), Airbnb (US$103bi), Pinduoduo (US$157bi), Meituan-Dianping (US$80bi), NuBank (US$56bi), Spotify (US$54bi), entre outras. No Brasil, além do já citado NuBank, temos outros unicórnios baseados em aplicativos, como iFood e 99 Taxi.
A popularização do smartphone também democratizou o acesso à internet, expandindo significativamente o mercado potencial para as empresas de internet já estabelecidas, que souberam se adaptar à era dos dispositivos móveis. Gigantes como Alphabet (US$1,9 trilhão), Amazon (US$1,9tri) e Meta (US$1,2tri) atualmente geram a maior parte de suas receitas a partir de atividades mobile.
Lista de Apps mais populares em Q1/2023
Embora esses números contem uma história de sucesso e inovação sem precedentes, eu gostaria de dar um cavalo de pau nesse artigo e oferecer agora uma perspectiva diferente:
Quando a Internet Deixou de Ser livre?
A estratégia de negócios da App Store é explicada pela “Teoria da Agregação”, um conceito proposto por Ben Thompson, tema de artigo do bsb. De forma breve, a teoria sugere que, ao contrário do mundo físico, onde a oferta de produtos é limitada pelo espaço físico, como as prateleiras de um supermercado, a Internet oferece uma capacidade quase infinita de oferta.
No entanto, mais crucial do que a oferta ilimitada é a capacidade de agregar a demanda dos consumidores. Empresas que conseguem centralizar essa demanda atuam como intermediárias essenciais entre consumidores e fornecedores, cobrando um “pedágio” sobre transações econômicas.
Teoria da Agregação
A Teoria da Agregação sustenta o sucesso dos negócios de efeito de rede. Instagram, Facebook, Twitter, Airbnb, Uber, TikTok e PayPal são todas redes.
Historicamente, os fabricantes de hardware, seja a Dell, HP ou Positivo Tecnologia, não conseguiram implementar esse modelo de negócios. O motivo é que a Internet é uma plataforma aberta. Qualquer um pode criar e visitar um site sem pedir permissão, contanto que siga as leis vigentes.
A Apple, com o lançamento do iPhone, viu a oportunidade de transcender seu papel como fabricante de hardware para se tornar uma empresa com efeito de rede. Existia um racional econômico. Primeiro, potencialmente aumentaria as margens da empresa. Enquanto um iPhone tem margem bruta de 37%, a divisão de serviços da Apple, da qual a App Store é o principal negócio, tem margem bruta de 71%. Segundo, aumentaria o mercado potencial, obtendo receitas adicionais de serviços.
Para conseguir realizar essa mudança, a Apple teria que mudar um aspecto fundamental da Internet, que é a sua liberdade.
Quando usamos a Internet num computador, seja como consumidor ou desenvolvedor, não precisamos pedir permissão para a empresa que fabricou nossos computadores. Também não precisamos pedir permissão à proprietária do nosso sistema operacional, como a Microsoft, dona do Windows.
No entanto, nós precisamos pedir permissão e seguir as regras da Apple quando usamos o iPhone. Ao forçar os desenvolvedores a pedirem permissão para operar em seu sistema, a Apple acumulou poder. No mundo de negócios, pedir permissão quer dizer ser forçado a pagar um pedágio. Os 30% de comissão que a Apple cobra são um número 10 vezes maior que a média da indústria de pagamentos.
Um advogado poderia dizer, “Olha, Edu, mas quando você começa a usar o iPhone, você concordou com os termos de uso”. É verdade, mas estes termos são complexos de ler e ainda mais de entender.
Muitas pessoas acreditam que isso não é um grande problema. É comum o discurso de que “O iPhone é muito bom, com ele posso fazer coisas que nunca poderia antes. Qual o problema?”.
O problema é que ela pegou uma tecnologia que era livre e se colocou como controladora de uma porcentagem relevante dela. Ao fazer isso, ela transformou a Internet em algo centralizado, menos interessante, dinâmico e justo.
Em 2023, a divisão de serviços da Apple, que inclui a loja de aplicativos, faturou US$85 bilhões. Vamos estimar que metade seja da App Store. São US$42 bilhões que poderiam virar economia para usuários ou receita para as empresas que de fato criaram os produtos.
Depois de 16 anos, essa taxa ainda faz sentido? Ao cobrar um pedágio de 30% sobre mais de 25% do mercado de smartphones, a App Store torna-se praticamente uma peça central da infraestrutura da Internet. Ativos de infraestrutura costumam ser regulados. E é isso que estamos começando a ver.
Todos contra a Apple
Em 2020, a Epic Games, criadora do jogo Fortnite, entrou em uma disputa legal com a Apple. A Epic argumentou que a Apple poderia manter um negócio lucrativo cobrando uma taxa de apenas 8%, mais alinhada com as taxas de outros marketplaces, em vez dos 30% usuais.
Desafiando as políticas da App Store, a Epic implementou seu próprio sistema de pagamento dentro do aplicativo, o que levou à rápida remoção de Fortnite pela Apple.
Antecipando essa medida, a Epic processou a Apple e lançou uma campanha de marketing que evocava a icônica propaganda da Apple de 1984.
Ao longo do processo, a Epic enfrentou derrotas em várias instâncias, mas a Apple também não emergiu completamente vitoriosa.
A batalha da Epic não é isolada. Recentemente, gigantes como Meta, Microsoft, X (de Elon Musk) e Match Group (proprietária do Tinder) uniram forças solicitando à justiça que impedissem a Apple de implementar mudanças na App Store. Estas alterações, exigidas pela Comissão Europeia, incluem permitir alternativas aos sistemas de pagamento da Apple.
O Governo entra em Campo
O Spotify acusou a Apple de práticas antitruste perante a Comissão Europeia em 2019, alegando que a empresa limitava a competição no mercado de streaming de música através das políticas da App Store.
Após quatro anos de investigação, a Comissão concluiu que a Apple havia abusado de sua posição dominante, impondo uma multa de US$1,9 bilhões e exigindo mudanças em suas políticas, como a proibição de impedir desenvolvedores de informar usuários sobre assinaturas mais acessíveis fora da App Store.
Mês passado o Departamento de Justiça dos Estados Unidos moveu uma acusação antitruste contra a Apple. A alegação é que a empresa engajou-se em um comportamento ilegal amplo e sustentado para preservar seu poder de monopólio, limitando o acesso a componentes críticos de hardware e software e impedindo concorrentes de acessarem o ecossistema do iPhone. Um exemplo citado é o bloqueio de serviços de jogos em nuvem, que poderiam diminuir a dependência do iPhone.
A Apple defende suas práticas, argumentando que as restrições visam proteger a privacidade e a segurança dos usuários. Segundo a empresa, a ação judicial “prejudicaria nossa capacidade de inovar e de desenvolver a tecnologia que as pessoas esperam da Apple”.
E Agora?
A história nos mostra poucos exemplos de empresas tão influentes e prósperas como a Apple enfrentando o escrutínio do governo por questões antitruste. Casos emblemáticos como o da Standard Oil e da AT&T resultaram na divisão dessas corporações em entidades menores. No entanto, não parece provável que o mesmo destino aguarde a Apple. A empresa já demonstrou que luta com unhas e dentes na justiça contra qualquer movimento que possa prejudicar seus lucros.
A divisão de serviços da Apple não apenas possui as margens mais lucrativas da empresa, como também é crucial para o seu crescimento futuro. Qualquer desafio a essa divisão poderia representar um risco significativo para o valor da companhia.
Um professor de Stanford costumava dizer para “nunca apostar contra uma empresa cujo produto é amado pelos consumidores“. O desfecho mais provável parece ser uma flexibilização das políticas estritas da App Store, permitindo que o iPhone mantenha sua posição dominante até que surja uma alternativa superior. Não é sem motivo que a OpenAI está explorando o desenvolvimento de hardware. Esse projeto esta sendo feito junto com Jony Ive, designer que trabalhou décadas na Apple e foi um dos pais do iPhone. Na lista de potenciais investidores dessa nova empresa esta Laurene Jobs, ex-esposa de Steve Jobs.
Após 16 anos, talvez os consumidores estejam prontos para algo mais inovador. As inovações em novas versões do iPhone parecem incrementais, e a Apple tem se apoiado mais na familiaridade dos usuários com sua interface do que em avanços tecnológicos.
Talvez seja hora de a Apple fazer uma introspecção e perguntar-se:
“Nesta situação, o que Steve Jobs faria?”
Steve Jobs em Stanford
Grande abraço
Edu
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