O bsb é uma newsletter semanal sobre a arte e ciência de construir e investir em empresas de tecnologia. Para receber nossos e-mails, basta clicar abaixo:

Olá! Hoje estou começando uma nova série, analisando as principais empresas e produtos de tecnologia que não possuem boas cobertura em português. A ideia é que esta seja a primeira parada de todo investidor, operador e fundador que quiser entender mais sobre elas. Hoje vou cobrir o WeChat e semana que vem a empresa dona dela, a Tencent. Esta é uma das empresas mais complexas e relevantes do mundo e por isso merece dois artigos.

 Se você tem apenas um minuto, aqui está o resumo do artigo:


  • O WeChat se beneficiou de uma nova plataforma computacional, o smartphone, e de um mercado pouco penetrado pela Internet. Hoje mais de 1.3 bilhão de pessoas usam o produto todo mês.
  • O segredo do sucesso de um Super App esta na habilidade de usar o trafego de usuários e distribuição para gerar negócios para seus parceiros.
  • O segredo do sucesso do seu sucesso na China esta no design de produto. Toda decisão é feita para melhorar a experiência de usuário, as vezes em detrimento de stakeholders da própria empresa. O mantra do seu criador é “Trate o usuário como seu amigo”.
  • Essa postura leva a confiança e permite serviços financeiros. Os usuários deixam seu dinheiro no WeChat pois confiam que a empresa não vai se aproveitar das suas informações. Isso abre múltiplas avenidas de receita
  • O WeChat é a peça chave do motor de fazer dinheiro da Tencent
  • O Ocidente tem vários candidatos, mas nenhum que se tornou de fato um Super App. Quem conseguir pode vir a criar a empresa mais valiosa do mundo

O conceito de Super App é perseguido por várias empresas. Globalmente, Microsoft, Meta e Twitter. No Brasil, Rappi, Nubank, Mercado Livre, Banco Inter, dentre outras tem como objetivo criar um Super App.

No entanto, mesmo investidores e empreendedores em tecnologia têm dificuldade em descrever o que é e o que é capaz de fazer. Em resumo: ele faz tudo.

Um Super app é um aplicativo que consegue construir, a partir da sua função central, um conjunto de serviços que parecem descorrelacionados, mas que seus usuários iriam querer de qualquer forma, todos concentrados em apenas um lugar. Imagina um app no qual você consegue fazer a compra do mercado, pagar o seu aluguel, revisar documentos do trabalho, agendar uma viagem, pedir remédios, comprar ações e conversar com seus amigos. Isso é um Super App. O melhor paralelo que temos hoje aqui no Brasil é o sistema operacional do iPhone e do Android. Na verdade, essa comparação faz bastante sentido.

O segredo do sucesso de um Super App esta na habilidade de usar o trafego de usuários e distribuição para gerar negócios para seus parceiros. Quanto mais coisa você faz no aplicativo – com o mínimo de fricção possível – mais forte fica o flywheel do mesmo.

O Nascimento do primeiro Super App

O principal – alguns argumentam que único – exemplo de Super App é o WeChat. Em 2010, a Tencent já tinha um produto de mensagens muito bem sucedido, o QQ, que é parecido com o MSN e ICQ, ou seja, feito para ser usado no Desktop.

Com o surgimento do smartphone a empresa percebeu que o QQ não conseguiria prover uma experiencia tão boa em mobile. Pode parecer óbvio hoje – apesar de muitas empresas no Brasil não perceberem isso – mas o celular é muito diferente do desktop.

Primeiro, faz uma série de coisas que o desktop não faz: tem GPS, bussola, é mais fácil acessar o microfone, etc.

Segundo, dado o seu preço, o smartphone seria a plataforma que colocaria a população chinesa inteira na Internet. O mercado potencial de usuários seria muito maior.

É aqui que a história da Tencent começa a se diferenciar do resto das outras empresas. Ao invés de simplesmente adaptar o produto existente, ela decide que vai criar um produto novo, do zero, otimizado para mobile. No melhor estilo chines, o fundador da Tencent cria dois grupos diferentes e isolados, cada um iria desenvolver um aplicativo de mensagens para smartphone, e o melhor iria vencer, afinal competição sempre faz bem e traz aquela motivação extra. O time vencedor foi o liderado por Allen Zhang, creditado como o “Pai do WeChat”.

Em 2011 o WeChat é lançado, pronunciado em Chines como Weixin (微信) — “micro palavra” (adoro ter uma esposa que fala Mandarim), inicialmente como um aplicativo de mensagens para mandar textos, voz e fotos para amigos e família. É importante entender o contexto histórico da China. Naquela época a maioria das pessoas não estava online e não tinha nem e-mail. Seu primeiro contato com a Internet foi via o smartphone e o WeChat era simplesmente o melhor aplicativo de mobile. O crescimento foi explosivo e hoje o WeChat é um dos poucos aplicativos a ultrapassar o número de 1 bilhão de usuários. Todo mês, 1,3 bilhão de pessoas o utilizam! Na China muitas pessoas não tem email, o WeChat ID faz o papel disso.

Allen Zhang, o segredo do WeChat

Fui pesquisar sobre o criador do aplicativo e sua descrição na Wikipedia tem apenas 4 frases. Isso não quer dizer que não seja importante, mas sim que as pessoas no Ocidente não o conhecem direito. Este vídeo do Youtube dele é uma verdade aula sobre produtos. Adoro quando ele diz que não foi na reunião anual de produtos da Tencent por ser perda de tempo.

Se você gosta de tecnologia, precisa conhecer Allen Zhang. Na China, tem tanta importância cultural quanto Steve Jobs. Ele é visto na China como um artista e filosofo, especialmente pela sua missão contra qualquer coisa piore a experiência do usuário. Ele simplesmente foi o pai do melhor aplicativo do mundo. Por que estou chamando-o de o melhor? Pois nenhum outro teve o impacto cultural e econômico que o WeChat. Facebook tem uma enorme importância, mas episódios como o Cambridge Analytica, influência em eleições e o aumento de casos de depressão em adolescentes devido a dinâmica social do Instagram e Facebook colocam uma mancha difícil de ser limpada…

A regra de ouro de Zhang é Trate o usuário como seu amigo. Isso quer dizer desenhar produtos com a melhor das intenções para os usuários, colocando seus interesses acima de todos, até mesmo dos stakeholders da própria empresa. Ele diz que “Apenas quando tratarmos usuários com empatia genuína é que nossos produtos serão utilizados por muito tempo.

Uma consequência da priorização da experiencia do usuário é uma tendencia em evitar qualquer tipo de monetização que impacte negativamente o uso da plataforma. Eu adoro uma frase dele em que diz que “Se o WeChat fosse uma pessoa, seria o seu melhor amigo baseado na quantidade de horas que você passa no aplicativo. Sendo assim, faz sentido colocar uma propaganda na cara do seu melhor amigo? Imagine que antes de falar com ele, tivesse que assistir uma propaganda”. O WeChat limita fortemente o quanto de propaganda um usuário recebe por dia.

Aqui vale uma reflexão. Eu adoro assistir TV via apps pois não tem propaganda. No entanto, eu uso o Instagram e recebo um ad a cada 4 stories. Além disso, alguns influencers que sigo também mostram propaganda. Estimo que entre 25-35% do que eu vejo no app é advertising. Vamos comparar: na década de 90 um episodio de Friends tinha 23 minutos para um espaço de 30 min. Isso quer dizer que 23% do tempo era de propagandas. No Instagram esse número é maior que na TV tradicional.

No entanto o Instagram nem é o maior problema. Outros sites simplesmente não tem noção sobre o quão ruim suas experiencias são no mobile. Vejam um printscreen de um site em que estava lendo uma reportagem:

Na visão de Zhang, a tecnologia deve trazer eficiência. Fazer algo mais rápido usando o app do que sem ele. O melhor e único KPI é adoção orgânica.

Por fim, uma das grandes sacadas foi fazer do WeChat um ecossistema descentralizado. Isso quer dizer que a Tencent não tentaria replicar todos os serviços do mundo ela mesma. Ao invés disso, abriria sua plataforma para que desenvolvedores e empreendedores criassem soluções aos seus usuários. Estes mini-programas ficam no aplicativo do WeChat, rodam nos servidores da Tencent  –  ou seja, não consomem memoria do celular, o que é importante para o segmento mais humilde da população que tem celulares mais simples – e trazem muitas funcionalidades. Isso se parece com o conceito da Apple Store, mas diferente da Apple que cobra 30% de taxa sobre qualquer compra digital no aplicativo, no caso do WeChat essa taxa é muito menor, abaixo de 5% de “pedágio” . A empresa também não cobra para que um aplicativo fique no topo das buscas. O objetivo é que o melhor aplicativo ganhe a atenção dos usuários, sem a “trapaça” do marketing.

Esse ponto se expande em um respeito ao usuário. Em evitar situações chatas. Por exemplo, no Ocidente se eu unsubscribe de um serviço, fico recebendo e-mail marketing dele por meses. “Oi, estamos com saudades”, “Promoção de 15% se você voltar”. Isso quer dizer que a empresa continua com meus dados. No caso do WeChat, se eu unsubscribe de um serviço, a empresa perde completamente o acesso a mim.

Estes mini-programas foram um tremendo sucesso. Empresas como Meituan-Diaping (US$140 bilhões de valor de mercado) e Pinduoduo (US$120 bilhões) são dois exemplos das muitas empresas que cresceram através não de aplicativos na apple store, mas via mini-programas no WeChat. Sendo assim, o ecossistema do WeChat é o mais vibrante da Internet globalmente, transacionando mais de US$400 bilhões em 2021. Hoje são milhões de mini-aplicativos que ficam dentro do WeChat. Além disso, existem as “contas oficiais”, são mais de 10 milhões, de empresas, celebridades, bancos e funciona, como as páginas na Internet. Estas contas acessam informações do ecossistema e são a forma como empresas se comunicam dentro do WeChat.

Top UI UX Trends to Rule in 2024 | Technbrains Blog

Confiança, a chave de tudo

O que todas estas características acima trazem ao usuário é confiança. Quem usa o WeChat, confia que a plataforma vai trata-lo da melhor forma possível. Sendo assim, não vê problemas em ter a plataforma agregando seus dados, que são compartilhados com seus parceiros de uma forma consciente e limitada. O que confiança traz? O direito de uma plataforma ser um meio de pagamentos. No Brasil virou moda toda empresa querer oferecer uma carteira digital. Quem vai querer deixar seu dinheiro rendendo zero num site de moda? Com o surgimento do WeChatPay, a empresa passou a cobrar um take rate de pagamentos das transações no aplicativo, mas, diga-se de passagem, com taxas abaixo de 0,5%, número este que nenhum Merchant Acquirer cobraria no Brasil.

Na China as pessoas usam o WeChat como meio de comunicação único. Eu uso telefone, Whatsapp, Email (da empresa, pessoal e do bsb) e Linkedin. É uma baderna e gera fricção – e aqui neste comentário esta uma desculpa discreta pelo fato de que demoro a responder as pessoas – enquanto eu sei que meu número de celular e email será vendido para alguma empresa de e-mail marketing, no WeChat eu não tenho essa preocupação.

Steve Jobs disse que via o smartphone como carros e o desktop como um caminhão. Não é que um vai substituir o outro, mas eles tem funções diferentes. No Ocidente temos que criar versões do aplicativo para Web, iPhone e Android. Na China, apenas para WeChat. Se considerarmos que o talento esta igualmente distribuído no mundo, o aplicativo do WeChat será melhor, pois todo esforço foi concentrado nele. A experiencia na internet na China é superior a do Ocidente e o WeChat é parte fundamental disso. Pra ficar num exemplo: eu pesquiso preço de passagem no meu smartphone, mas compro no desktop. Não sei porque faço isso, acho que é porque no desktop é mais seguro e que o smartphone é só pra brincar. Na China a compra é feita 100% no smartphone. A China não é mobile first, mas sim mobile only. Eles ficam a vontade de usar apenas o carro, já eu preciso do carro e do caminhão.

O WeChat é a peça chave do motor de fazer dinheiro da Tencent

O modelo de negócios do WeChat é elegante. Aqui defino elegante como (i) sustentável; (ii) rentável; (iii) que não precisa de crescimento super acelerado para ficar rentável; (iv) consegue crescer de forma orgânica; (v) um bom produto que os usuários amam; (vi) Diversificação de receitas. Sobre o último ponto, o WeChat ganha dinheiro via take rate de serviços, take rate de pagamentos e ads.

No ano passado o WeChat trouxe mais de US$17 bilhões para a Tencent e a permitiu oferecer vários outros serviços, como jogos, vídeos e nuvem.

E no Ocidente, tem Super App?

Não. Até hoje não apareceu uma empresa capaz de replicar o ecossistema que a Tencent criou.

O Facebook não tem a confiança dos desenvolvedores, especialmente depois que mudou os termos de suas APIs. A Amazon cria versões White Label de produtos que tem margem para que ela ganhe mais dinheiro, em detrimento do vendedor. A Apple cobra um imposto altíssimo dos seus aplicativos. Os aplicativos de refeição tem chance devido a recorrência de compras, mas seus take rates são considerados altos pelos restaurantes. Os aplicativos de bancos tem sistemas de segurança que geram muita fricção. Quem chegou mais perto até hoje é o google com o Android, mas não conseguiu criar uma experiencia coesa.

E o WhatsApp? Bom, como um amigo chines me disse: “Edu, enquanto o Whatsapp tem 90 engenheiros, a Tencent tem 9,000, não tem como comparar”. É por isso que vários features do WhatsApp, como grupos e voz surgiram muitos anos antes no WeChat.

De todo os países do Ocidente o Brasil, com sua sociedade isolada (tema de um artigo futuro) teria condições para ter um Super App. O que falta na minha visão é:

(1) Densidade de Profissionais de Produto

(2) O custo de capital no Brasil hoje a 13.75% é muito alto. Durante anos a Tencent não monetizou o WeChat e isso foi essencial para seu crescimento. Não sei se existe empresa com capital o bastante para viabilizar tal projeto no Brasil e o capital privado esta mais escasso e caro.

(3) Repensar a coleta e distribuição de informações de usuários, o que é algo difícil de se fazer.

No entanto, tem alguns bons candidatos…

Quais as principais lições do WeChat?

Para os operadores: o WeChat é uma nova forma de pensar a experiencia da Internet Mais fluida, integrada, tratando o usuário e todos os stakeholders com respeito e sem explorar seus participantes. Para funcionar, precisa de apoio do topo da companhia, pois muda a forma como esta é organizada, priorizações mudam, é abrir mão de receita de curto prazo por maior de longo prazo.

Para investidores: rodar um produto sem qualquer monetização é uma decisão de alocação de capital importante. Estamos ainda no início. O Brasil pode vir a ter um Super App um dia.

E semana que vamos entender a Tencent, empresa dona do WeChat.

Grande abraço, Edu

DISCLAIMER: essa newsletter não é recomendação de investimentos. Seu propósito é puramente de entretenimento e não constitui aconselhamento financeiro ou solicitação para comprar ou vender qualquer ativo. Faça a sua própria pesquisa. Todas as opiniões e visões são pessoais do próprio autor e não constituem a visão institucional de nenhuma empresa da qual ele seja sócio, colaborador ou investidor.